Descobrindo a verdadeira natureza da raiva

07/08/2014 11:11

No momento em que você sente raiva, você tem a tendência de acreditar que seu sentimento foi criado por outra pessoa. Você culpa esta pessoa por todo o seu sofrimento. Mas, ao fazer um exame profundo, você talvez perceba que a semente da raiva que existe em você é a principal causa do seu sofrimento. Muitas outras pessoas, quando confrontadas com a mesma situação, não ficariam com a raiva com que você fica. Elas ouvem as mesmas palavras, presenciam a mesma situação, mas são capazes de permanecer mais calmas, sem se deixarem afetar tanto pelas circunstâncias. Por que você se enraivece com tanta facilidade? Talvez isso aconteça porque a semente da raiva é muito forte, e como você não praticou os métodos destinados a cuidar bem da raiva, a semente dela pode ter sido regada no passado com excessiva freqüência.            

 

Todos temos uma semente da raiva nas profundezas da nossa consciência. No entanto, em alguns de nós, esta semente é maior do que nossas outras sementes como a do amor e a da compaixão. A semente da raiva pode ser maior por não ter sido cuidada através da nossa prática no passado. Por isso, como já disse, quando começamos a cultivar a energia da plena consciência, a primeira coisa que percebemos com clareza é que a principal causa do nosso sofrimento, da nossa aflição, não é a outra pessoa, e sim a semente da raiva que existe em nós. Nesse momento, paramos de considerar a outra pessoa culpada do nosso sofrimento. Compreendemos que ela é apenas uma causa secundária. Você sente um enorme alívio ao descobrir isso e começa a se sentir muito melhor. Mas a outra pessoa pode ainda estar sofrendo porque não aprendeu a cuidar da própria raiva. Quando isso acontece, está na hora de ajudar o outro.

 

Quando não sabemos lidar com o nosso sofrimento, deixamos que ele se derrame sobre as pessoas que estão em volta. Quando você sofre, faz com que as pessoas ao seu redor também sofram. Isso é bastante natural. É por esse motivo que temos que aprender a lidar com o nosso sofrimento, para não o espalharmos em torno de nós. Quando você é o chefe da família, por exemplo, você sabe que o bem-estar dos seus familiares é extremamente importante. Como você tem compaixão, não permite que seu sofrimento afete os que estão à sua volta. Você pratica e aprende a lidar com seu sofrimento porque sabe que nem ele nem sua felicidade são uma questão individual.

 

Quando você está com raiva e não quer lidar com ela, fica sem defesa, sofre, e também faz as pessoas à sua volta sofrerem. Sua primeira reação é achar que a pessoa que causou a raiva merece ser punida. Tem vontade de castigá-la porque ela fez você sofrer. Mas, depois de praticar durante dez ou quinze minutos a respiração, a meditação andando e o olhar consciente, você compreende que ela precisa de ajuda e não de punição. Esta é uma percepção justa. Essa pessoa pode ser alguém muito próximo a você sua esposa, seu marido, algum dos filhos. Se você não ajudá-la, quem o fará?

 

Depois então de acolher e abraçar a raiva, sentindo-se muito melhor, você nota que a outra pessoa continua a sofrer. Esta percepção gera em você um movimento em direção a ela, num grande desejo de ajudá-la. Trata-se de uma forma completamente diferente de pensar e de sentir, pois o desejo de punir simplesmente desapareceu. A raiva se transformou em compaixão.

 

A prática da plena consciência nos torna mais atentos e perspicazes. Esta capacidade de discernimento é fruto da prática que pode nos ajudar a perdoar e a amar. Num período de quinze minutos, ou de meia hora no máximo, a prática da plena consciência, da concentração e do discernimento é capaz de libertar você da raiva, enchendo seu ser de amor.

 

Quando você entende o sofrimento da outra pessoa, você é capaz de transformar seu desejo de punir, passando apenas a querer ajudá-la. Quando isso acontece, você sabe que sua prática teve êxito. Você é um bom jardineiro.

 

Dentro de cada um de nós existe um jardim, e cada praticante precisa voltar para dentro de si mesmo e cuidar dele. Talvez no passado você tenha se dado conta disso. Agora, então, precisa saber o que está acontecendo no seu jardim e procurar colocar tudo em ordem. Restaure a beleza e restabeleça a harmonia do seu jardim. Muitas pessoas se encantarão com seu jardim se ele for bem cuidado.

 

Quando éramos crianças, aprendemos a respirar, a andar, sentar, comer e falar. Fizemos tudo isso instintivamente sem pensar. O que eu proponho agora é que tomemos consciência dos nossos atos para renascermos espiritualmente. Para isso, temos que aprender a respirar de novo, de um modo consciente. Aprender a andar de novo, conscientemente. Aprender a ouvir de novo, com consciência e compaixão. Aprender a falar de novo, com a linguagem do amor, para honrar nosso compromisso original. Dizer a nossa verdade, com respeito e suavidade, e acolher a do outro: "Meu amor, estou sofrendo. Estou com raiva. Quero que você saiba disso".

 

Esta frase expressa a fidelidade ao nosso compromisso. Meu amor, estou fazendo o melhor que posso. Estou cuidando da minha raiva. Para o meu bem e para o seu. Não quero explodir, destruir a mim e a você. Estou fazendo o melhor que posso." Esta lealdade provocará respeito e confiança na outra pessoa. E finalmente diremos: "Meu amor, preciso da sua ajuda." Esta é uma declaração muito poderosa, porque, quando estamos com raiva, geralmente temos a tendência de dizer: "Não preciso de você, não quero te ver pela frente." Se você puder dizer as três frases anteriores com sinceridade, do fundo do coração, o outro passará por uma transformação. Não duvide dos efeitos dessa prática.

 

Com o seu comportamento, você consegue influenciar a outra pessoa e incentivá-la a começar a praticar. Ela pensará e sentirá: "Meu parceiro está sendo fiel falando a verdade. Ele está de fato tentando fazer o melhor possível. Preciso fazer a mesma coisa." Isso significa que, quando cuidamos bem de nós mesmos, estamos cuidando bem da pessoa que amamos. O amor por nós mesmos é a base da nossa capacidade de amar o outro. Se não cuidamos bem de nós mesmos, se não estamos felizes e tranqüilos, não podemos fazer a felicidade de mais ninguém. Não podemos ajudar nossos seres queridos, não podemos amá-los. Nossa capacidade de amar uma outra pessoa depende totalmente da nossa capacidade de amar e cuidar bem de nós mesmos.

 

Nossos ferimentos podem ter sido causados pelo nosso pai ou nossa mãe. Eles repassaram o que sofreram quando crianças. Como não sabiam a forma de curar as feridas da infância, eles as transmitiram para nós. Se não soubermos como transformar e curar nossos próprios ferimentos, vamos transmiti-los para nossos filhos e netos. É por isso que temos que voltar à criança ferida que existe dentro de nós para ajudá-la a ficar curada.

 

Às vezes, essa criança precisa de toda a nossa atenção. Ela pode emergir das profundezas da nossa consciência pedindo atenção. Se você estiver consciente, ouvirá a voz dela pedindo ajuda. Quando isso acontece, é hora de desligar-se de tudo em torno e voltar-se para dentro, acolhendo e abraçando carinhosamente a criança ferida dentro de você. Respire conscientemente dizendo: "Ao inspirar o ar, volto-me para minha criança ferida; ao soltar o ar, cuido amorosamente da minha criança ferida." Você precisa praticar e se voltar para a sua criança ferida todos os dias, abraçando-a com carinho, falando com ela. E você também pode escrever uma carta para ela dizendo que reconhece sua presença e fará tudo que estiver ao seu alcance para curar seus ferimentos.

 

Quando eu falo que é preciso ouvir com compaixão, talvez vocês pensem que se trata apenas de escutar uma outra pessoa. Mas também precisamos escutar a criança ferida dentro de nós, pois ela está continuamente conosco. E nós podemos curá-la a cada instante, neste exato instante. "Minha querida criança ferida, estou aqui do seu lado e desejo intensamente ouvir você. Por favor, conte-me tudo sobre seu sofrimento, descreva toda a sua dor. Estou aqui, estou realmente escutando." Se você conseguir fazer isso e ouvi-la dessa maneira durante cinco ou dez minutos todos os dias, a cura certamente acontecerá. Quando subir uma bela montanha, convide sua criança interior para acompanhar você. Quando contemplar a beleza de um pôr-do-sol, convide-a para compartilhá-lo com você. Se fizer isso durante algumas semanas ou meses, sua criança ferida ficará curada. A plena consciência é a energia que pode nos ajudar a realizar essa cura.

 

Um minuto de prática é um minuto em que geramos a energia da plena consciência. Ela não vem de fora e sim de dentro de nós. A energia da plena consciência é a energia que nos ajuda a estar totalmente presentes no aqui e agora. Quando você toma chá com plena consciência, seu corpo e sua mente desfrutam uma perfeita união. Você é real e o chá que bebe também se torna real. Quando sua cabeça está cheia de projetos e preocupações, você não está realmente tomando seu café ou seu chá. Você está bebendo seus projetos e suas preocupações. Você não é real, nem o café ou o chá são verdadeiros. Seu chá ou seu café só podem se revelar como uma realidade total quando você se voltar para o seu eu e estiver plenamente presente, libertando-se do passado, do futuro e das preocupações. Quando você tem consciência de si e do seu momento presente, o chá também se torna real e o encontro entre você e o chá é real.

 

Existe a meditação do chá que oferece a você e seus amigos a oportunidade de se exercitarem na prática de estar realmente presentes, concentrando-se na xícara de chá e gozando plenamente tudo o que ela tem a oferecer sabor, perfume, calor. Concentrando-se e usufruindo a companhia uns dos outros. A meditação do chá é uma prática destinada a nos libertar. Se você ainda sofre as limitações e perseguições do passado, se ainda tem medo do futuro, se se deixa levar pela ansiedade e pela raiva, você não é uma pessoa livre. Não está totalmente presente no aqui e agora, de modo que a vida não está disponível para você. O chá, a outra pessoa, o céu azul, a flor não estão à sua disposição. Para que você possa realmente viver, para que consiga tocar profundamente a vida, você precisa ser livre. Cultivar a plena consciência ajuda você a se libertar.

 

A energia da plena consciência é a energia de estar presente. Corpo e mente unidos. Quando pratica a respiração consciente ou o andar consciente, você se liberta do passado, do futuro, dos seus projetos, das suas preocupações, e passa a estar presente e a viver totalmente. A liberdade é a condição fundamental para você tocar a vida, tocar o azul do céu, as árvores, os pássaros, o chá e a outra pessoa. É por isso que a prática da plena consciência é tão importante. E não pense que você precisa treinar durante muitos meses para conseguir fazer. Uma hora de prática por dia ajuda a ser mais consciente.

 

Exercite-se tomando conscientemente seu chá, seu café, saboreando o gosto, aspirando o perfume, sentindo na mão o calor da xícara, e, durante esse processo, transforme-se numa pessoa livre. Exercite-se para se tornar uma pessoa livre enquanto prepara o café da manhã, ao tomar banho, ao vestir-se. Quando andar pela rua, quando arrumar a casa. Ao acordar, em vez de deixar-se assaltar pelas preocupações, sinta e usufrua a maciez dos lençóis, perceba a claridade que entra pela janela. Qualquer momento do dia é uma oportunidade para você exercitar a plena consciência e gerar essa energia.

 

"Meu amor, sei que você está aqui e me sinto muito feliz". Através da plena consciência, você é capaz de tomar profundo contato com o que existe no momento presente, inclusive com a pessoa que você ama. O fato de conseguir dizer ao seu ente querido "Meu amor, sei que você está aqui e me sinto muito feliz" demonstra que você é uma pessoa livre. Prova que você tem a mente atenta, que possui a capacidade de valorizar e apreciar o que está acontecendo no momento presente. O que acontece no agora é a vida que pulsa em seu ser e na pessoa que você ama, e que está viva, diante de você.

 

Quando você abraça a outra pessoa com a energia da plena consciência, olhando para ela e dizendo "Meu amor, acho maravilhoso você estar aqui ao meu lado. Isso me deixa muito feliz", isso causa a sua felicidade e a felicidade do outro, porque ele sente como é real o sentimento que você expressa. É diferente de abraçar automaticamente, dizendo palavras convencionais que não vêm da plena consciência da presença do outro e do valor dessa presença. Quando conseguimos estar plenamente com o outro, a possibilidade de ficarmos com raiva é muito menor. Quando se zangar ou sentir raiva, respire ou ande conscientemente durante dois minutos para se restabelecer no aqui e agora, para viver de novo. A outra pessoa pode estar dominada por preocupações, raiva e ansiedade, mas você pode salvá-la, e salvar-se, através da plena consciência.

 

(Do livro “Aprendendo a lidar com a raiva”  de Thich Nhat Hanh)